Quando o escritor e educador Ilan Brenman ouviu a adaptada cantiga "não atirei o pau no gato...", ele se enfezou. Preocupado com a imposição do politicamente correto nas músicas e histórias infantis, aprofundou-se no assunto para fazer justamente o contrário: ele acabou de apresentar sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo sugerindo que o uso de temáticas politicamente corretas não só é incapaz de incutir essas atitudes na criança como também retira uma das principais válvulas de escape dos medos e frustrações infantis. "Eu nunca matei um animal por cantar 'atirei o pau no gato'", afirma.
Para Brenman, que já escreveu mais de 20 livros infanto-juvenis, ao lidar com situações de conflito - morte, raiva, ciúmes, medo - a criança está criando ferramentas para trabalhar com as dificuldades da vida. "Elas escutam as histórias de forma diferente dos adultos. O obstáculo e o conflito representados nos livros são o reflexo das dúvidas que a criança possui dentro dela", diz o pesquisador. Ele argumenta que, se forem retirados os espaços para a criança lidar com seus sentimentos negativos, elas não terão como aprender a enfrentar as dificuldades e a violência pode explodir na vida real.
Na literatura infantil "do bem", são suprimidas menções às reações e comportamento negativos do homem. São histórias positivas, com lições de moral e sem personagens violentos como a bruxa e o bicho-papão. "Um dos exemplos da patrulha do ideologicamente correto pode ser visto na história da Chapeuzinho Vermelho". Existem livros publicados em que não há mais o lobo mau, ou que a barriga do lobo não é aberta para evitar imagens de violência na cabeça das crianças. "A cena da abertura da barriga do lobo é importante por trazer a ideia do renascimento, da vida que brota de outra vida", diz o educador.
Segundo o escritor, as travessuras da boneca Emília ensinam as crianças a pensar |
Contra a Emília "comportada"
A grande luta de Brenman parece ser contra a campanha para modificar os hábitos de uma das principais personagens da literatura infantil brasileira: a boneca de pano Emília, criada por Monteiro Lobato nos anos 1920. "Ela é uma menina respondona, atrevida, criativa e saudável", afirma. As crianças, segundo ele, também não são anjinhos. Elas têm doses de maldade dentro delas, e a boa literatura, com pitadas de conflito e comportamentos dúbios, permite às crianças compreender a oscilação sentimental que sentem e a lidar melhor com as neuroses do mundo.
O educador acredita que os pais não podem terceirizar a transmissão de valores morais para os livros. Esta é uma função que deve ser feita pela família, e qualquer tentativa de ensinar a ser bonzinho por mensagens já prontas em livros não terá efeito. Isso porque a percepção do bom e do mau deve vir pela reflexão. A leitura, diz Brenman, deve provocar a criança com situações de conflito para que ela raciocine sobre o assunto e tire suas conclusões.
A imposição do politicamente correto faz Brenman temer que cuidados excessivos, como a substituição de palavras consideradas ofensivas, façam com que a juventude atual se descole das histórias tradicionais. "Se não fizermos nada, daqui a pouco vamos ter que contar a história do "Afrodescendentezinho do Pastoreio", e não a do Negrinho do Pastoreio.
Via: Na Casa de Papaula
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